Comunicação social não honra o País


Jornalista, responsável pelo 'Câmara Clara' e sub-directora da RTP2, Paula Moura Pinheiro reconhece as assimetrias e os preconceitos dos portugueses em relação à cultura, mas não entra no discurso catastrofista
É responsável por um programa de divulgação cultural na televisão. Como é que resiste? Resisto porque estou na RTP2, que tem por missão produzir programação que não está no mercado como uma lógica estritamente financeira. O que não significa que não esteja numa lógica económica. A economia tem a ver com factores de desenvolvimento. Penso que é consensual que sem formação, sem leitura, sem a capacidade de interpretar o que se lê, sem cultura não há desenvolvimento. Por outro lado, conseguimos fixar no 'Câmara Clara' uma média de 100 mil espectadores. Se tivermos em conta que em Portugal - são números que abrangem o continente e as ilhas - 71% da população activa tem o ensino básico ou menos, 100 mil não é um número irrelevante.

Não basta saber ler, é preciso pensar, mas os portugueses já interiorizaram isso? Acho que temos uma longa história de iliteracia que nos distingue pela negativa dos restantes países europeus. Há 40 anos ler era entendido pela maioria das pessoas como algo ocioso e inútil. Há imensas passagens na literatura portuguesa, no século XIX, em que se fazem piadas sobre isso. O Eça, o Camilo brincaram com essa desconfiança estrutural que este povo muito iletrado tem com tudo o que seja actividade intelectual, cujo resultado prático não se vê imediatamente. Este foi o sentimento dominante durante décadas. As novas investigações em neurologia deixam claro que o cérebro de um leitor é diferente de um cérebro de um não leitor. Tem mais ligações nervosas, está desenvolvido de outra maneira. Portanto, quando falo de leitura é porque tem um impacto maior do que as pessoas imaginam. O efeito que isto tem nas pessoas é muito mais fundo. Se me pergunta se as pessoas aceitam que é importante saber pensar? Claro que não. Por isso é que nós tentamos tornar atraente algo a que as pessoas resistem.

O público resiste. Quem produz não tem também algum preconceito em não ir até ao público? Se há algo que caracteriza o nosso tempo é a ideia, para mim falaciosa, de que todos podem ser artistas. Hoje em dia há de tudo. Há pessoas que produzem a pensar, sempre e só, na recepção que as suas coisas vão ter. E há os que produzem a pensar em si próprios sem ponderar a recepção que as coisas vão ter. Há imensos produtos com uma vocação declaradamente popular, depois há as produções mais exigentes ou mais auto-centradas, onde não é ponderado o factor de recepção. Se há coisa que caracteriza o nosso tempo é a pluralidade na oferta, muito variada e sempre relacionada com esta ideia de que todos podem ser artistas.

E, de facto, todos podem ser artistas? Qualquer pessoa tem o direito de desejar ser artista, qualquer pessoa tem o direito de produzir o que bem entende seja na escrita, na pintura, no que for, mas a excelência sempre foi uma coisa rara. Foi-o no passado, é-o agora, isso não mudou. Não é credível, como dizia o António Lobo Antunes há tempos, que tenhámos tantos escritores. Claro que não temos. Temos imensas pessoas que escrevem livros, mas não temos tantos escritores, uma coisa e outra não são sinónimos.

Tem algum tipo de preconceito em relação ao que se produz? Tenho gostos e tenho a certeza de que as coisas não são todas iguais. Esta ideia muito contemporânea de que é tudo relativo e de que tudo vale o mesmo não é verdadeira. Não vale tudo o mesmo, a relatividade não é assim tão abrangente. Alguém que estudou anos a fio, que continua a estudar para ser um neurocirurgião fez um investimento na sua formação que tem reflexos naquilo que faz e não pode ser comparado a alguém que tem um trabalho maquinal para o qual teve um treino mínimo. Não é possível dizer que vale tudo a mesma coisa. Não vale tudo a mesma coisa. Ou pelo menos para mim não vale.

A sociedade reconhece e recompensa a quem investe em si? Acho que é lamentável que o saber não seja mais valorizado e não tenha uma tradução financeira, mas também acho que não é uma novidade, não sei se é só do nosso País. Com franqueza, em qualquer parte do Mundo, um empresário ágil e esperto ganha mais do que um professor universitário. Em Portugal, tudo assume outra dimensão porque não somos ricos. Como há menos dinheiro, como temos este problema estrutural de iliteracia, tudo é agudizado.

Eu gostaria que as pessoas compreendessem que frequentar uma universidade, ler, procurar saber mais, ter curiosidade não tem que ter uma tradução financeira automática. Dá prazer, isso não é uma questão de receber mais dinheiro, de o patrão nos pagar mais. Seria bom que fosse assim. Com certeza que há uma relação entre tudo isto, mas o importante é que as pessoas vivem com mais qualidade, pensam melhor, são mais livres porque pensam melhor. Se se encontram numa situação de impasse puxam pela imaginação para encontrar uma saída.

Em Barcelona, o consumo de espectáculos, de teatro e de livros aumentou com a crise. A cultura pode ser uma saída? Há uns anos entrevistei uma dupla de tradutores de russo que contaram que, nos últimos anos da União Soviética, subornavam-se polícias com livros. Sabemos que em Cuba não há sabonete, mas o nível de literacia e número de escritores cubanos interessantes são incríveis.Há pouco tempo um dos meus convidados no Câmara Clara tinha estado na Argentina, na altura do crash financeiro, e dizia que, em crise, as pessoas voltaram-se para a cultura. Quando aquilo chegou ao fundo do poço, quando as pessoas não tinham dinheiro para nada, voltaram-se com intensidade nunca vista para a arte, para as tertúlias. Porque isso é de borla. A História está cheia de momentos desses, mas tem de haver uma base de alfabetização. Uma das razões porque as pessoas não lêem mais é porque não sabem ler, porque estão mal alfabetizadas.

É como estudar numa língua estrangeira? É. Nunca se consegue comunicar como deve ser, nunca chega a ser fluente. Há uma fase inicial de preparação, que tem a ver com disciplina, com esforço, valores que se confundiram. Durante décadas a escola foi sendo esvaziada da disciplina e do método. Os meninos têm que estar muito contentes na escola, têm que estar sempre divertidos. Isto é um erro, não estou a fazer a apologia da reguada, mas estou a dizer que há aqui uma zona de esforço que não é negociável. As pessoas têm que desenvolver recursos internos, construir o seu património. Quem tem esse património interpreta a realidade de outra forma, defende-se melhor, antecipa melhor as situações, consegue imaginar melhor, arranja mais depressa solução para situações de impasse, arranja maneira de sair. A utilidade, a aplicação prática - que é uma obsessão contemporânea - é incomensurável.

Mas a cultura também é um negócio. A produção cultural no nosso País nos últimos anos aumentou exponencialmente. Tenho a percepção disso no 'Câmara Clara', recebemos informação de toda a parte do País, desde a zona mais recôndita de Trás-Os-Montes ao Algarve, passando pelas ilhas. Não são todas as coisas igualmente boas, mas há tanta produção e, no meio disto, há coisas muito boas e não necessariamente em Lisboa ou no Porto. Somos é um país muito assimétrico. O nosso problema é que temos gente excelente, em diversas áreas, mas depois temos um 'gap' enorme, uma assimetria brutal para a maioria da população. Temos autores e, por enquanto, isso não se tem traduzido numa diferenciação da maioria da população. Também não tenho um discurso catastrofista porque, apesar de tudo, nunca se leu tanto em Portugal como agora. O nosso problema é o atraso de décadas. É um programa Câmara Clara que resolve isto? Com certeza que não, é um contributo.

Acha que se podem integrar pessoas pela cultura, por exemplo? A educação pela Arte é um clássico. O Chapitô é uma escola que integra pela arte miúdos que a escola convencional já desistiu. E eles conseguem encontrar ali um lugar, uma forma de se exprimir e de serem produtivos de uma outra maneira. Temos casos de pessoas formadas ali. Tivemos cá em Portugal o responsável pelas orquestras juvenis da Venezuela, que é uma experiência fantástica.São miúdos dos bairros problemáticos que estão num projecto de iniciação à música erudita, cada um deles tem o seu instrumento e há dezenas e dezenas de orquestras espalhadas pela Venezuela.

E nós temos esse espírito de comunidade? Se há coisa que nos caracteriza é sermos uns individualistas, não temos um sentido de comunidade apurado, mas por outro lado somos generosos. Eu tive a oportunidade de dinamizar comunidades de leitores pelo País e foram lições para a vida. O que me ensinaram essas comunidades de leitores pelo país é que de onde menos se espera aparecem as pessoas com mais curiosidade, mais vontade de saber mais, com leituras inesperadas. Há um potencial por desenvolver, um potencial humano incrível por desenvolver em Portugal e que merece ser trabalhado, que merece ser investido no que tem de generosidade. A generosidade passa por ser acessível. O meu esforço no 'Câmara Clara' é traduzir. Todas as semanas peço aos meus convidados que falem de uma maneira simples. Isto não é condescendente, é um esforço de tradução e de seriedade.

Nos jornais, na televisão, parece que acontece tudo em Lisboa... A comunicação social não nos devolve o País que nós temos. Há uma narrativa nos meios de comunicação - jornais, televisão e rádio - que não honra o País que nós somos, mas isso tem a ver com os processos em que estão envolvidos os meios de comunicação social, estão envolvidos num negócio feroz, num negócio de audiências. A preocupação, que é fundadora no jornalismo, de narrar a realidade com lealdade - já nem falo em objectividade - não está a ser observada. Nós somos muito melhores do que os jornais, as rádios e a televisão dizem que nós somos. Existe um país muito mais interessante e que está em rede com a máxima inteligência do Mundo. Num dos últimos programas do Câmara Clara, trouxe a estúdio um açoriano, um investigador de 31 anos, que viveu nos Açores até aos 18 anos. Chama-se Manuel Lima, estudou em Lisboa, Nova Iorque, Finlândia e foi considerado esre ano pela revista 'Creative' uma das 50 mentes mais brilhantes da actualidade ao lado dos fundadores da Amazon e do Google. É brilhante, é um cidadão do mundo, não deixa de ser açoriano, não deixa de falar com pronúncia cerrada, não deixa de amar o seu arquipélago.

O local já não limita? É um bocadinho indiferente estar na Madeira, nos Açores ou em Bragança. O local constrange em África, onde as pessoas morrem à fome, onde se esgotam a tentar sobreviver. Não é o nosso mundo, temos de ter esta noção. Com todas as deficiências, com todas as dificuldades, Portugal andou mu+ito nestas últimas três décadas, em todas as partes deste País, mas não há milagres. O Manuel Lima é um miúdo bem alfabetizado, tem talento único, mas nunca seria um dos crânios mais brilhantes se não tivesse sido bem preparado.Temos que ser bem equipados. Há uma coisa que se chama o currículo invisível, são as tais competências que não contabilizáveis no currículo objectivo. Nas universidades mais diferenciadas no mundo anglo-saxónico não bastam as notas. Nas candidaturas existe sempre a entrevista pessoal para aferir comperências. É um factor de crucial na entrada na universidade - mesmo quando se tem notas - que depende muito desse currículo invisível.

Perfil

Paula Moura Pinheiro nasceu em Coimbra em 1966 e formou-se em Ciências da Comunicação em Lisboa. Começou como jornalista no 'Semanário' e passou depois por vários jornais e revistas. Trabalhou na SIC e dinamizou comunidades de leitores pelo País. Neste momento, apresenta o programa de divulgação cultural 'Câmara Clara' e é sub-directora da RTP2. Recentemente esteve na Madeira onde participou numa conferência organizada pelo Departamento de Estudos Romanísticos da UMa.

Marta Caires

in, Revista do Diario de Nóticias da Madeira - 14/06/2009